Um conto de Carnaval 

O carnaval não tem data fixa, sabe-se que ocorre entre o início e o fim de fevereiro. Essa festa pagã sempre me alegrou e ainda me alegra porquê de alguma forma eu posso ser realmente eu. Está pensando o que?

Dos salões do Gala Gay no Rio de Janeiro à passarela do Samba desfilando na Portela. Dos porres de caipirinhas ao café da manhã das quartas-feiras de cinzas num hotel qualquer. Respirar e viver o clima carnavalesco não é para qualquer um, mas é preciso experimentar todas as sensações, entregando-se à folia, à paquera, ao sexo entre iguais porque assim como eu, na velhice você terá histórias para contar.

Hoje enquanto os foliões colocam a fantasia e correm para os blocos, escolas ou salões, eu, literalmente tiro a minha máscara, me despojo da fantasia e caminho despreocupado por ruas e vielas vazias da metrópole.

Os tempos são outros e não vejo mais as beatas com véu cobrindo a cabeça ir à igreja ou o senhor José reclamando da Suzana porque não preparou o chapéu de pirata para ir ao baile de salão lá no bairro.

A saudade aperta o coração ao ouvir antigas marchas, confetes, serpentinas e apitos são imagens distorcidas num cenário desbotado visto através do espelho do tempo.

Ah! O tempo passou e no presente criei refúgios para fugir das aglomerações em ambientes fechados ou espaços públicos. Na semana passada da sacada do apartamento observei um bloco de rua com foliões se divertindo ao som de músicas com batidas modernas, pois as antigas marchas, hoje são objeto de censura por conotações e ofendas a um ou a outro.

Entre os foliões identifiquei alguns conhecidos travestidos de não sei o que, moradores de rua bêbados e sem rumos guiados pelo carro de som. Muita sujeira e um odor de urina que subiu aos céus chegou ao quarto andar e se dissipou janela adentro.

Você pode dizer que fiquei ranzinza e que a velhice, gay ou não, não combina com o clima de carnaval. Talvez esteja certo, porque a festa da carne é para a juventude, livre, leve e solta, sem compromisso ou senso crítico. Vale tudo por alguns dias de perdição.

Já não há tanto riso ingênuo e nem tanta alegria com mil palhaços no salão. Arlequim é personagem do folclore chorando pelo amor da Colombina no meio da multidão.

Foi bom te ver outra vez é frase feita e arcaica nos tempos atuais, pois um ano é um flash do ritmo alucinado do presente e o carnaval que passou, passou não volta mais.

Mesmo se eu fosse aquele Pierrot, quem acreditaria num viado travestido de personagem da commedia dell’Arte com caráter e rosto de palhaço triste?

A mesma máscara negra que esconde o rosto delata a homossexualidade disfarçada na heterossexualidade, porque na folia desses dias, tudo é permitido. Aproveitar os cinco dias de folia porque a quarta-feira de cinzas, é cinza e a vida volta ao normal.

Eu quero matar a saudade porque não existe mais o clima dos antigos carnavais, ingênuos, mas seguros, coisa de velho saudosista, talvez.

Então, não me leve a mal vou me recolher no aconchego do interior entre pássaros, flores e ouvir uma coleção de marchinhas antigas porque hoje é carnaval.

Ah, não se esqueça da camisa de vênus e um ótimo carnaval!

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A homossexualidade no Brasil no século XIX

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Largo do Rocio no fim do século XIX

Caro leitor, eu sei que este artigo talvez não cative a sua atenção, mas é sempre bom conhecer um pouco sobre a homossexualidade em tempos passados para entendê-la no tempo presente.

Escrever sobre a homossexualidade de épocas muito distantes é um tanto quanto complicado. É necessário pesquisar, ler, abstrair, etc. Também o tema é amplo e tentei resumir os principais tópicos.

Enfim, sobre o século XIX no Brasil e mais especificamente nas capitais, sabe-se que marcou de forma profunda a sociedade brasileira devido às mudanças estruturais em grandes centros como Rio de Janeiro e São Paulo.

Os hábitos sociais foram objetos de atenção das ciências, que se voltaram com o propósito de compreendê-los, estudá-los e controlá-los, fazendo surgir as categorias de normalidade ou anormalidade, principalmente no campo sexual.

A homossexualidade ganhou destaque quando surgiram pesquisas científicas procurando nomear e classificar as variações sexuais, logo marcadas e rotuladas como desvios ou patologias.

Contudo, essas mudanças que ocorreram no século XIX não se referiam a todas as práticas sexuais e vários segmentos sociais foram arrolados como pervertidos, degenerados e desviantes, já que ameaçavam a normalização médica, cujo período higienista estava em curso.

A homossexualidade passou a ser vista como sinal de degeneração, surgindo um julgamento moral, dos discursos religiosos, jurídicos e médicos. Todos esses discursos serviram para criar o estereótipo homossexual..

Embora o discurso fosse rude e pouco encorajador, face às reações e consequências sociais e legais, a prática homossexual era algo amplamente difundido naquele período como ações marginalizadas, já que o que não é aceito é reservado ao silêncio, à obscuridade e ao anonimato.

Em vários locais públicos, como parques e praças, os homens que buscavam relações sexuais com outros homens encontravam-se para fazer sexo. No Rio de Janeiro, o largo do Rocio, atual Praça Tiradentes(foto) foi célebre por ser o lugar onde à noite reuniam-se os pederastas passivos à espera de quem os desejasse e os possuísse.

Existiam lugares que eram bastante frequentados por homossexuais, tais como portas dos teatros, cafés, restaurantes, bilhares, botequins, portarias de conventos, escadarias de igrejas, casas de banho, além dos já citados parques e praças, o que dá ao leitor uma ideia da ampla rede de relações homossexuais que existia naquele período.

A situação ficou tão comum e isso causava  aversão às classes médica, jurídica e religiosa, que foi necessário importar prostitutas da Europa, na intenção de conter as práticas homossexuais..

As relações homossexuais na Marinha eram generalizadas e chamadas de amor de marinheiro. Essa relação não se dava entre iguais, envolvia relação de hierarquia funcional, hierarquia de idade, hierarquia de experiência, apesar de serem consideradas faltas graves e punidas com chibatadas.

Além da Marinha, no Exército as práticas homossexuais também eram muito difundidas. Embora as práticas acontecessem com mais frequência em comunidades fechadas, como o Exército, a Marinha, conventos e colégios internos, devido ao distanciamento social e da reclusão de pessoas do mesmo sexo, sua ocorrência não era restrita a esse ambientes.

A prática da homossexualidade, também acontecia em ambientes refinados e intelectuais, como o corpo diplomático, o magistério, o funcionalismo público e o meio dos literatos e poetas.

Já entre as classes mais baixas, os encontros casuais ocorriam nos bairros pobres das cidades e o sexo era praticado em lugares ermos, matagais e longe dos olhos das comunidades. Há relatos orais de praticas sexuais em quintais, matadouros, sítios e chácaras distantes. Algumas vezes os pederastas eram flagrados em pleno ato sexual. Imagine a cena!

Nesse contexto social, a homossexualidade era praticada mais por instinto e desejo do que por amor e afeição. Da solidão e isolamento das periferias os homens de classes mais pobres passaram a migrar para o centro das cidades devido à facilidade e maior probabilidade de encontros em locais públicos, bem como, para fugir dos olhares críticos dos conhecidos e vizinhos.

Essa corrente migratória misturou as classes e o sexo homossexual quebrou barreiras sociais e colocou os homossexuais no mesmo balaio, frequentando os mesmos lugares. Este modelo se espalhou para as demais capitais brasileiras e a interação entre os pederastas colocou frente a frente, a burguesia e a plebe, os fidalgos e os escravos, uma mistura tipicamente brasileira, ou universal?

Já nas primeiras décadas do século XX esses locais centrais das cidades demarcaram territórios e que hoje conhecemos como guetos, mas isso é outra história.